“Estamos todos com saudades do futuro”
O cardeal D. Américo Aguiar falou em exclusivo com o nosso jornal sobre o primeiro mês enquanto bispo de Setúbal e a sua visão sobre temas como os abusos sexuais na igreja e a crise política e social.
Foi na Cúria em Setúbal que o Cardeal D. Américo Aguiar recebeu a equipa de jornalistas para falar do seu acolhimento como Bispo de Setúbal. Depois de um mês já decorridos, D. Américo Aguiar sente-se um servo de Deus realizado com a comunidade que o Santo Padre, Papa Francisco, designou-lhe como uma grande missão, depois daquela que teve em coordenar o maior evento religioso no país, sendo a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) que decorreu entre o dia 1 e 6 de agosto deste ano em Lisboa.
D. Américo Aguiar como se sente neste regresso a Portugal?
Quando me perguntaram se fiquei triste por não ir para Roma, eu disse que nem todos os portugueses têm de sair do país para concretizar a sua vocação. Nós temos de ver o seguinte, e principalmente as novas gerações Erasmus. Nós falarmos com um adolescente hoje e falarmos com alguém que tem 50, 40, 30 anos, não é o mesmo. Temos consciência que as novas gerações, as tais mais bem formadas das que alguma vez já tivemos, têm uma perspetiva de lugar muito líquida, muito digital, muito global, portanto estarem aqui, ou na “Cochinchina”, ou estarem não sei o quê mais, é quase o mesmo. O que deve fazer diferença, é eu ir porque quero e não porque não há hipótese de concretizar a vida e os sonhos. E isso é que é complicado. Se um jovem quer ir para o estrangeiro estudar, trabalhar, constituir família, ou realizar os seus sonhos, eu acho que deve ir. Agora se um jovem quer estar em Portugal, quer estar em Setúbal, quer estar na sua terra, quer estudar, quer trabalhar, quer constituir a sua família, mas não tem condições materiais de trabalho, isso é que devemos ajudar a alterar. Um território não deve ser obstáculo, seja cá ou noutro ponto qualquer.
Que balanço faz deste primeiro mês enquanto bispo de Setúbal?
Muito positivo, pelo menos da parte que é minha perspetiva. Aliás, ainda hoje visitei, esta manhã [terça-feira, dia 28 de novembro], a Associação da Indústria da Península de Setúbal, a AISET, e a Associação de Futebol de Setúbal, ando a visitar os partidos também. E nestes dias e neste mês que já passou, já visitei quase todos os agentes da cidade, os protagonistas deste território, as autarquias, as forças de segurança, os organismos do Estado, as associações privadas e públicas, o Instituto Politécnico de Setúbal, as universidades, a “Rota dos Vinhos.” A rota empresarial vou começar agora também, portanto para ter ideia da realidade do território, principalmente para estar mais sensível, e mais conectado com a realidade, para não estar a dizer coisas que as pessoas podem dizer “ele não está a ver bem, ele não conhece isto.” E, portanto, tentar conhecer o máximo possível, para depois ser mais útil, naquilo que é o meu trabalho de primeira responsabilidade, sendo o testemunho de Cristo Vivo, a evangelização, a missão. E depois é aquilo que eu disse na tomada de posse, que é ter consciência de que estamos cá todos para o bem comum. O que faz um bispo, o que faz um padre, um presidente de câmara, o que faz um polícia, alguém do Ministério Público, de uma empresa privada, do Mercado do Livramento, do Porto de Setúbal, das IPSS, das Misericórdias, das famílias, dos trabalhadores, dos alunos, se todos dermos as mãos para o bem comum, tudo é bem melhor.
E durante estas visitas que identificou, o que encontrou?
Total acolhimento, fraterno, em todas as áreas e há dias ouvi esta expressão e gostei: “estamos todos com saudades do futuro”. Ou seja, noto que as pessoas estão todas com muitas expectativas, com muitas esperanças naquilo que o futuro nos guarda, e isso é bonito e é importante. O Papa nestes dias fez a mensagem para o Dia Mundial da Juventude, que foi no domingo de Cristo Rei: “Alegres na Esperança.” E a certa altura diz que a esperança é alavanca de todos os dias para nos levantarmos de manhã, nós temos de acreditar que amanhã pode ser diferente, pode ser melhor e pode ser o meu dia. Portanto, noto em todos os protagonistas deste território uma certa esperança em relação ao futuro que está para chegar.
Quando tomou posse enquanto bispo de Setúbal disse que a sua prioridade é que ninguém na diocese “se sinta para trás”. Como vai conduzir este desejo?
Com todos. O Papa Francisco, aliás, dizia isso, quando foi a Fátima, na Capelinha das Aparições: “Olhai, esta capelinha não tem portas, nem janelas, está aberta.” E eu usava a imagem de Cristo Rei, de braços abertos, para acolher a todos. E isso é que temos de fazer, o anúncio do Evangelho é para todos, nós não somos donos do Evangelho. A conversão, o acolhimento na vida de cada pessoa faz milagres, opera conversões e é isso que desejamos. E o primeiro passo é que todos se sintam acolhidos e nem sempre isso acontece.
Visitou recentemente dois estabelecimentos prisionais, do Montijo e de Setúbal, e referiu que encontrou “condições sub-humanas”. Como estão a viver os reclusos?
Eu fui Capelão no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino, em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, que é um projeto inovador, em que a segurança da cadeia é do Estado, mas a gestão corrente da cadeia é da Misericórdia do Porto, é uma cadeia nova e no pormenor da limitação da liberdade, é boa, aquelas pessoas que lá estão podem acreditar que aquele período de limitação da liberdade pode ajudá-las a refletir e a converterem-se. Agora quando a gente visita o Estabelecimento Prisional de Setúbal, e ainda mais, para o negativo, o Estabelecimento Prisional do Montijo, vê que aqueles os nossos concidadãos, que estão a cumprir uma pena. A sociedade aplicou-lhes um castigo e a pena é um tempo da sua vida de conversão, de emenda e de regresso. Ora nós não podemos impor aqui uma pena que ainda é mais pesada de viver em condições abaixo do que são os níveis de respeito pela dignidade da pessoa humana, que devemos aos nossos reclusos. Quando estamos a falar com os amigos, familiares e conhecidos daquele preso, entendem o que estou a dizer. Claro que uma vítima, a família de uma vítima, alguém que sofreu as consequências dos atos daquele que está preso, às vezes entende que devem ser mal tratados, viver dificuldades. Mas nós temos de entender enquanto sociedade evoluída que as coisas não são assim. A direção da cadeia, os guardas prisionais, os trabalhadores, são magníficos, mas agora as condições físicas, de vida dos presidiários… Nós não podemos ter um espaço pequeno, com quatro beliches de três lugares cada, um onde vivem doze homens. Eu sei que estes nossos concidadãos, é fácil esquecermo-nos deles, estão lá fechados, mas não podemos de querer e desejar, que no nosso território, uma pessoa que cumpra uma pena não seja tratada com dignidade.
D. Américo Aguiar considerou “inaceitável” que as comunidades sadinas continuem a ser referidas “negativamente” pela opinião pública. Como se pode mudar este paradigma?
Este território tem tudo, temos um tecido universitário impressionante, uma capacidade empresarial industrial instalada, temos instalações militares: Exército, Fuzileiros, a NATO. Temos o Porto de Setúbal que é uma referência e uma potência, temos a Serra da Arrábida, temos os vinhos, os queijos, a agricultura, a pesca. Neste bocadinho deste território temos aplicadas todas as potencialidades abençoadas por Deus. É preciso que isto seja conhecido pelos portugueses, em primeiro lugar, e que a imagem daquilo que vivemos nos anos 80 seja corrigida. Eu não quero dizer que não há problemas, que infelizmente há, há geografias identificadas que continuam num ciclo de pobreza e de sofrimento, mas estamos nós para cortar o ciclo. Bairros sociais com problemas temos no Porto e em Lisboa, não sei medir quem tem mais problemas, mas que todos precisam de entrega e dedicação isso é verdade, mas temos de cortar o ciclo. Aos que estão a nascer agora, aos que são miúdos, por meio de um investimento grande, temos de os inserir na sociedade, de maneira que eles saiam do ciclo e possamos daqui a uma geração resgatar esta malta nova. Não me venham dizer que gostam de viver assim, ninguém quer ver os seus filhos e os seus netos a viverem dificuldades, portanto temos de fazer tudo o que está ao nosso alcance para quebrar estes ciclos.
Como encara a crise política que estamos a viver no país, uma vez que já alertou publicamente para os riscos de uma generalização de suspeitas sobre quem desempenha cargos públicos?
É verdade, não sei se os portugueses, os latinos, ou a rapidez da circulação da informação do mundo digital, facilmente dizemos que se um professor comete uma falha, os professores são todos não sei o quê, se um polícia, um padre comete um pecado, e assim sucessivamente. E ultimamente, aos cidadãos que se disponibilizam a servir os portugueses no desempenho de cargos públicos ou eletivos, estamos numa crescente desta generalização que não é boa para ninguém. Pode ser controverso, mas se tivermos uma conversa de verdade e de generosidade, para refletirmos, antes de respondermos de imediato, os nossos eleitos não têm remunerações monetárias “xpto”, pode haver um caso ou outro, mas por regra não têm esse estatuto remuneratório comparado com a atividade privada com as mesmas responsabilidades. É uma atividade de muita pressão, se fores político estás 24 horas por dia sobre escrutínio, e bem, e não é das 8h00 às 17h00, é sempre, com consequências para a família. Nós temos de cuidar daqueles cidadãos que se disponibilizam para o exercício das funções públicas. Não ajuda de facto alguns protagonistas da política sejam com verdade condenados, o que mancha o trabalho dos outros 99%, mas nós como sociedade não podemos confundir. Se todos somos assim tão maus, para a semana quem toma conta disto, não sobra ninguém. Ou sobra meia dúzia de justos, de puros, que não têm pecado, mácula e isso não existe na sociedade verdadeira.
A igreja também tem sido vítima daquilo que definiu agora enquanto “crise da generalização”?
Nós temos de dar continuidade ao que o Papa Francisco nos pede da transparência total e da tolerância zero. E naquilo que é a nossa diocese, nós trabalhamos todos, eu agradeço muito à comissão diocesana para a proteção de menores e de pessoas vulneráveis. Temos todos como cidadãos de colocar na prioridade destes temas as vítimas, que tiveram coragem e força de abrir o seu coração para contar uma coisa que aconteceu de muito sofrimento e salvaguardar que se devem sentir seguras, acompanhadas e respeitadas naquilo que é darem esse passo. E acho que em Portugal esse caminho está a ser feito. E depois sermos capazes de não generalizar. Há uma denúncia a validar, as autoridades devem atuar para averiguar a certeza, de um momento para o outro tudo é denúncia, tudo é suspeito, e não fica pedra sobre pedra, porque não era bem assim. Nos últimos anos cresceram os processos das comissões para salvaguardar a denúncia que a vítima faz e a pessoa denunciada. O Papa diz que a dor não prescreve, pode o direito canónico, ou direito civil, decretar um prazo, mas para a pessoa isso não acontece e cabe-nos a nós acolher e cuidar da pessoa. Desde a assunção de responsabilidades no acompanhamento médico, psicológico, ao ressarcir materialmente as pessoas que tenham vivido isso. Mas eu defendo que cada caso é um caso e não devemos fazer generalizações.
Retomando o tema da crise, neste caso a social e económica que tem assombrado o país com o aumento da inflação e das taxas de juro. Qual o papel da igreja neste cenário de grandes dificuldades?
A Igreja em todas as crises e num modo especial o setor social, que quero aqui homenagear, as Misericórdias, as IPSS, da Igreja ou as Mutualidades, o chamado terceiro setor, quero agradecer muito, porque tem sido a almofada social, o que é reconhecido por todos os agentes políticos. A Igreja está sempre em alerta, é o nosso modo de viver. Mas agora o salário mínimo aumenta, e deve aumentar sempre, o problema é que as instituições vivem sempre na linha vermelha e quando há um aumento de despesa e não há o respetivo de receita, soa logo o alarme. Os números são muito importantes e as instituições ligadas à Igreja recebem, de subsídios e de apoios do Estado, aqui na diocese de Setúbal, cerca de 29 milhões de euros, mas para funcionem têm de arranjar por meios próprios e expediente outros 15 milhões para sobrevirem e darem essas respostas. A Igreja tem de dar estas respostas, mas também sensibilizar os políticos, para que nestas flutuações económicas as leis do mercado não esmaguem as pessoas. Se as pessoas são postas fora de casa porque não têm capacidade de pagar a casa, ou morrem de fome porque não têm como comprar alimentos, algo está mal. Não vale a pena o mercado, mercado só pode existir para as pessoas. E temos de sensibilizar para que os mais frágeis economicamente não fiquem para trás e tenham uma rede que os salve.
O Vaticano divulgou em julho os números oficiais da Igreja Católica em Portugal, antes do regresso do Papa ao país, apresentando uma percentagem de católicos de 87,8% da população. Considera que os mais novos estão afastados da igreja ou sente que estes dados se refletem também nos jovens?
A Jornada Mundial da Juventude mostrou-nos uma vivacidade e não podemos perder estes jovens que estão disponíveis para dar este testemunho. Um dos pontos mais bonitos destes eventos foi despertar os jovens para a fé. Há momentos da vida que estamos mais subterrâneos, outros mais expostos para dar testemunho da fé. Eu durante a minha escola nunca falei nem de catequese, nem de missa, nem de religião, nenhum de nós falava, mas ao fim de semana encontrávamo-nos nos escuteiros, nos acólitos, na catequese. Isto são fases da nossa vida que todos vivemos, mas não é desculpa. O que é certo é que todos nós temos de ter um acerto de comunicação, às vezes nós falamos e os jovens não nos entendem. E há aqui uma dificuldade de comunicação, a malta nova é diferente, o Papa Bento XVI numa mensagem para o Dia Mundial da Juventude disse: “A revolução industrial mudou o mundo, a organização do trabalho, dos processos de produção, e criou uma nova cultura. A revolução digital está a fazer o mesmo.” Com a revolução digital encurtamos o tempo e o espaço para nos comunicarmos, vamos a todo o lado em menos tempo e em menos espaço. Mas parece que às vezes nunca tivemos tão sós. É um novo paradigma em que os jovens vivem. No meu tempo os nossos pais tinham dificuldade em que ficássemos em casa, a nossa mãe ia à janela gritar o nosso nome para virmos jantar. Hoje os pais queixam-se que os filhos não saem de casa, estão sempre no computador, parece que não têm amigos. Não é assim, é diferente, o Papa Francisco diz que todos nós nos temos de ligar à Wi-Fi, e a Wi-Fi é Cristo, e falta aqui a palavra-passe: Cristo Vivo, Fraternidade, Amor, Verdade, Justiça. Muitos valores que os jovens têm adesão, mas que às vezes há falha de comunicação, mas quando somos capazes de falar a linguagem deles fazemos caminhos juntos.
E que passos tem dado a igreja no sentido de criar e desenvolver uma comunicação em comum com os jovens?
A Igreja é como a mesa de família que se reúne e há sempre tensão, quem tem esta vivência de comunidade e de grupo sabe que não somos todos iguais e ainda bem. Mesmo dentro da igreja tens setores, sensibilidades, o desafio é esse.
Segundo os dados disponibilizados pela sala de imprensa da Santa Sé, verifica-se uma quebra no total de sacerdotes em Portugal, ao longo das duas últimas décadas, baixando de 3159 para 2389 (menos 24,4%). Como interpreta esta crise de novos rostos?
Em Portugal, no pós-concilio, anos 60-70, houve uma grande deserção devido à expectativa de casar e não casar. E esse fosso ainda hoje faz peso na estatística. Depois temos uma camada de sacerdotes, no Porto tinha padres com 90 anos em atividade paroquial, temos muitos com 70, 60 e temos o tal fosso. Mas há diminuição de vocações, mas também em todas as outras áreas. Quando olhávamos para uma família tinha 3, 4, 5 filhos e atualmente é o pai, a mãe e o filho, dois filhos já é uma família numerosa. É uma sociedade nova, diferente, em que vamos sentir em todas as áreas a crise vocacional. Por incrível que pareça as empresas dizem que embora a taxa de desemprego, não há trabalhadores. Temos um problema vocacional na sociedade e na nossa área também. Se no passado era normal a família colocar a questão vocacional, hoje não é. Hoje uma boa parte dos jovens que abraçam a possibilidade de estudar a sua vocação, são eles que colocam a questão de uma vida de consagração e missionária, e a certa altura se deixam tocar. E o Papa diz que os jovens se deixam tocar mais facilmente num contexto de fazer coisas, de ajudarem, concretizarem, de se sentirem amados, respeitados.
Então de que forma a igreja pode chamar novos sacerdotes?
A nossa pesca não é no aquário, há essa tentação, mas temos de pescar em mar aberto. E também espero fazer pescas milagrosas nesta região, que tem uma ligação milenar com o mar.
Que mensagem gostaria de deixar para os nossos leitores?
Como estamos às portas do Natal, o que eu peço e digo a todos os leitores é que sejam capazes de serem homens e mulheres de esperança, independente da religião. E que acreditem que amanhã pode ser diferente, porque se não é difícil viver se tivermos de costas voltadas com o amanhã. E depois dizer que não se sintam sós, nós estamos juntos, para fazer caminho juntos. Acreditar que o amanhã pode ser melhor e tenho um papel para desempenhar, sou importante e indispensável. Ter esperança. Para nós Cristãos Católicos, a nossa esperança é Cristo Vivo.